Na contracapa encontramos uma sinopse pouco esclarecedora: quatro linhas que informam o futuro possível leitor do que ele encontrará ao longo de duzentas e poucas páginas. E, se é pouco esclarecedora, é também pouco satisfatória, pois não há um único vislumbre do enredo. No entanto, não deixa de ser bem sucedida no que toca ao aguçar a curiosidade do leitor. Se o título o atrai – “Que assunto?”, pergunta ele –, as escassas linhas que encontra no lado oposto intrigam-no.
Dessa forma, intrigados, entramos “às escuras” neste Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, apenas sabendo que encontraremos “caricaturas. Humores. Derivações. E alguns anacolutos.” E, se tínhamos esperanças de perceber imediatamente afinal que assunto é esse que figura no título da obra, elas são deitadas por terra, pois somos apanhados pelas divagações – por vezes reflexivas e por outras tantas vezes satíricas – de um narrador que cedo se mostra assaz interventivo.
Entre descrições minuciosas de edifícios, divisões, acontecimentos passados, presentes e até mesmo futuros, Mário de Carvalho apresenta-nos as suas personagens. Desde o primeiro instante, traça caricaturas delas, ridicularizando-as, exagerando determinadas características das suas personalidades, deixando patente que estão ali com o propósito de representar estereótipos da sociedade.
Ninguém é poupado, nem mesmo o seu protagonista, Joel Strosse Neves, um cinquentão que tem de coexistir com os seus fracassos, desilusões – sendo a mais angustiante a prisão do seu filho – e arrependimentos por não ter feito nada no passado, que às vezes podem ser mais frustrantes do que os arrependimentos por se ter feito algo. Ele tem “andado por aí, aos baldões, tenho sofrido que nem um cão, tenho falhado em tudo” (p. 208) e, numa altura da sua vida em que já não lhe resta muito por que lutar, é-lhe retirado a única coisa que o fazia sentir-se útil: o seu cargo na Fundação Helmut Tchang Gomes.
Agora, confinado à biblioteca da fundação, Joel sente-se ainda mais aviltado, mais isolado do mundo e menos relevante para ele.
Esta mudança de funções dentro da fundação, justificada pelos seus interesses intelectuais – eufemismo para “você não serve para este cargo” –, despoleta uma espécie de raiva que se junta a todas as suas desilusões e fracassos e se materializa na sua decisão de entrar para o Partido Comunista Português. Acredita que aí encontrará uma voz, reconhecimento, mas principalmente conforto e camaradagem (“As pessoas, lá, não são maltratadas, pois não?”, p. 208), coisas que não encontra no seu trabalho, em casa e, como Mário de Carvalho dá a entender pela falta de menções, nos amigos.
Para entrar no PCP, contará com a ajuda de Jorge Matos, um conhecido dos tempos de faculdade que “foi erigido ao panteão dos heróis, na ideia de muitos, na de Joel também” (p. 51) e que pertence ao partido, embora este já não tenha muito significado para ele.
Através desta personagem, que no passado foi um rebelde, um inconformado com o regime salazarista, mas que agora é bem diferente, e também do seu protagonista, Mário de Carvalho faz referências aos tempos do 25 de Abril, o que faz de Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto um romance não só satírico mas também histórico, como o Memorial do Convento, de José Saramago. A desproporcionalidade de conteúdo histórico existente entre os dois livros é enorme e óbvia: Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto é um romance inteiramente ficcionado, apenas contém algumas menções aos tempos da ditadura, enquanto o Memorial do Convento, ainda que muito fantasioso, tem diversas alusões a episódios verídicos do reinado de D. João V.
Mas esta não é evidentemente a maior semelhança entre as duas obras. Existem outras muito mais perceptivas para quem está familiarizado com a escrita dos dois escritores: tanto Mário de Carvalho como José Saramago fazem uma crítica à sociedade recorrendo à sátira e servem-se de narradores participativos que estão sempre prontos a opinar, a divagar muito e a mostrar predilecção pelos seus protagonistas.
Não obstante Joel Strosse ser o protagonista do romance, ele não é poupado a uma caricatura. Ao contrário de Saramago, que coloca o seu herói Baltasar e, por conseguinte, Blimunda e o povo num pedestal, Mário de Carvalho não atribui o estatuto de herói ao seu protagonista. O narrador de Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto simpatiza com ele, mas simplesmente por pena e não pela sua heroicidade.
Este não é um livro que critica um grupo de pessoas através da exaltação de outras, é um livro que denuncia os maus hábitos de todos e algumas extravagâncias e manias de outros, que, não sendo moralmente condenáveis, são, no mínimo, irritantes.
Por outro lado, em relação aos “vilões” das histórias, a tomada de posição é muito similar: D. João V, de Saramago, e Eduarda Galvão, de Mário de Carvalho, são as personagens mais censuradas.
De vilã Eduarda Galvão apenas tem o facto de ser uma excelente oportunista e manipuladora que, na falta de inteligência e cultura geral, usa uma intuição assombrosa e uma dose de sedução para atingir os objectivos dos seus “planos de vida, esquemas e estratégias”.
Se no início a nossa vilã parece uma peça solta, logo ganha destaque e começa a afectar a vida das personagens, provando, como o narrador tinha avisado, que “tem um destino a cumprir” (p. 59) nesta trama em que todos estão ligados.
É uma dessas ligações, a relação de Eduarda e Jorge, que dá mais vida ao elemento anedótico do livro. Os diálogos dos dois, sempre de cunho cómico, enfatizam a burrice e capacidade de manipulação da jovem Eduarda e a facilidade com que Jorge, que se orgulha de não se envolver com pessoas “do lado de lá do fosso” (p. 190), se deixa lograr.
O enredo vai-se desenrolando a um ritmo pacato, por vezes demasiado lento, principalmente na segunda parte, na qual surgem outras personagens e, por conseguinte, mais daquelas descrições pormenorizadas a que os leitores mais impacientes tanto têm aversão. A escrita bem-humorada tão presente na primeira parte parece esmorecer um pouco nesta segunda metade, dando lugar a um fim triste que nos faz simpatizar ainda mais com Joel ou apenas ter mais pena dele, independentemente de todos seus defeitos.
(recensão feita no âmbito da cadeira Língua e Expressão do Potuguês)
Excelente análise. Mesmo. Crítica, comparativa... Então é disto que o Trindade gosta :P Ahah. Brincadeira. Está muito, muito, muito bom. De todas as que li nos blogs de jornalismo é, sem dúvida, a melhor.
ResponderEliminarUhhh obrigada.
ResponderEliminarEle achou que a parte comparativa era demasiado (sublinhou o demasiado XD) grande
Quando disseste que tinhas comparado este livro com o Memorial do Convento achei estranho, agora percebo... Muito bom conseguida a comparação! :)
ResponderEliminarSe não fosse isso ele dava-te o 18, então! ihih. Agora desanimei com a recensão que fiz deste último livro, depois de ler esta... :p